Quinta-Feira, 21 de Novembro de 2024

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Jorge Aragão: ‘Para mim, tinha acabado a vida’

Por Elisângela Costa em 05/11/2023 20:53:34

Após superar câncer, compositor celebra recomeço com show em arena e parcerias com rappers, planeja álbum de inéditas e já mira apresentação do aniversário de 75 anos

Na quarta-feira passada, Jorge Aragão fez a sexta e última sessão de quimioterapia para tratar um linfoma. Segundo os médicos, o câncer no sistema linfático foi vencido. O sambista já se sente com mais coragem para se olhar no espelho e não estranhar a barba rala que lhe restou e mudou a aparência com a qual o público e ele mesmo estão acostumados.

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— Eu tenho o maior medo (de morrer) — conta. — Quando recebi a notícia do linfoma, para mim tinha acabado a vida. Não conseguia pensar em ninguém que tivesse superado um câncer. Só me lembrava dos amigos que tinham ido embora. Foi uma sentença, mais uma.

28 stents e UTI

Cardiopata, Aragão tem 28 stents (pequenos tubos que impedem o entupimento das artérias). Em 2020, foi parar na UTI por causa da Covid-19. Andar no fio da navalha, diz ele, é rotina.

— Fico escutando as pessoas dizerem: “é tão bom olhar para o céu, tão bom ver a natureza, beber, comer”. Essas frases quase corriqueiras para os outros não são corriqueiras para mim. O peso delas é muito maior — afirma.

É com muito trabalho que ele celebra o recomeço. No próximo sábado, cantará na Jeunesse Arena, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. Ao longo de novembro, mês da consciência negra, lançará nas plataformas singles de seu Projeto Identidade, no qual reinterpreta sucessos seus ao lado de rappers. Planeja pôr na rua em janeiro um álbum de inéditas. E, em março, um show será filmado para marcar seus 75 anos.

Sobre se apresentar na Jeunesse Arena, com capacidade para 18 mil pessoas, diz que “a ficha ainda não caiu”. Garante não ter medo, mas vê como algo grandioso para o trabalho que diz sempre ter desejado fazer:

— Sou compositor, não sou cantor. A minha essência é o que eu escrevo, escrevi e ainda vou escrever. É o que me move. Nunca gostei da minha voz. Agora estou mais acostumado, mas não suportava me ouvir na secretária eletrônica.

Reconhece que são tantos os sucessos de seu repertório que o público o ajuda cantando: “Vou festejar”, “Coisinha do pai” (que foi parar em Marte, usada pela Nasa para acordar um robô), “Coisa de pele”, “Papel de pão”, “Moleque atrevido”, “Tendência”, “Enredo do meu samba”, “Do fundo do nosso quintal”, “Resto de esperança” etc. E ainda tem o tema da Globeleza, feito com o parceiro Franco.

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— Até hoje toca — diz, e logo relembrando “Coisinha do pai”. — Fiz uma música para minha filha e ela foi bater em Marte. Como eu vou entender isso?

Ativismo involuntário

“Identidade” foi composta num quarto de hotel depois de ele tomar calote de um produtor de shows. Acabou virando hino da população negra.

— Não sou ativista, não nasci para ser representante da voz negra. Sem perceber, fiz músicas que foram para esse lado — aponta Aragão, para quem o racismo não está cedendo no país. — Nada vai mudar se não tiver no topo da cadeia uma representação negra. Não é que vá mudar o mundo, mas vai ter essa ótica de colocar as coisas no devido lugar. Senão, vai ser assim: põe um pretinho aqui, dá um pedacinho para o outro.

O Projeto Identidade foi lançado em outubro com Aragão e Xamã cantando “Eu e você sempre” e participação do produtor Dalto Max. Em um pedaço da faixa, Xamã improvisa. No mesmo formato, também participarão Emicida, Djonga, Marcelo D2, L7nnon e outros.

— Levo dois anos para fazer uma música. Esses meninos vão para um canto, pegam o celular e saem cantando na mesma hora. Confiam tanto naquilo que fazem que vão embora —diz admirado, para depois brincar. — Tenho certeza de que não se lembram depois do que fizeram.

De ‘pior corneteiro’ a sambista do primeiro time

Aragão não era para ser do samba, sequer da música. Na casa de Padre Miguel, seus pais ouviam poucas coisas, entre elas Elizeth Cardoso e Românticos de Cuba. Aprendeu violão sozinho, olhando outros tocarem. Passou para guitarra e entrou para bandas de bailes, como a TNT 5. Quando serviu na Base Aérea de Santa Cruz, pediu para ser corneteiro, cujo trabalho era notado às 22h e às 6h. No ínterim, escapava para tocar nos bailes.

— Para convencer as pessoas, eu disse: “Nasci para ser corneteiro”. Mas acho que fui o pior que passou por lá — recorda.

Na Aeronáutica, conheceu seu primeiro parceiro, Jotabê. Compuseram “Malandro” em 1967. O samba seria gravado apenas em 1976 por Elza Soares e foi um estouro. Até hoje é cantado pelo país.

Estranho no ninho

Em seguida, conheceu o Cacique de Ramos, tornando-se o principal violonista das rodas. No disco “Pé no chão” (1978), de Beth Carvalho, feito com músicos que ela descobriu no Cacique, ele emplacou a faixa de maior sucesso: “Vou festejar”. É cantado em pagodes, mas também em celebrações políticas e estádios de futebol.

— Parece que Deus me põe no lugar certo na hora certa. Tenho parceiros de talento e não consigo alcançar o pé deles. Não entendo por que eles também não chegam (aonde ele chegou). Fico com vergonha. Parece que estou roubando um lugar — diz, também assegurando não entender como se tornou um sambista de ponta. — Não carrego a representatividade do samba. Não vim do meio, não fui de escola de samba, não fui de favela, de morro.

Aragão fala bastante em Deus. Na adolescência, ganhou uma Bíblia de uma igreja protestante, mas deixou de frequentar quando soube que não poderia pegar doces de Cosme e Damião. Cultiva sua fé de modo particular.

— Como a religião é tão forte e acontece isso agora (o conflito entre Israel e Hamas)? O ser humano mata desse jeito em nome de defesa e também de religião. Não tenho competência para debater isso com os outros. Melhor compor — acredita.

Zeca Pagodinho se valeu de fé para torcer pelo parceiro (no samba “Não sou mais disso”, por exemplo) quando Aragão estava internado por causa do linfoma. Todo dia, às 18h, ligava para uma das duas filhas do amigo, Tânia, e pedia para fazerem uma corrente em prol da recuperação. Parece que deu certo.


Fonte: O Globo

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