O público foi pego de surpresa com um boletim médico de Faustão, divulgado pelo Hospital Albert Einstein na noite deste domingo (20), em que dizia que o quadro de insuficiência cardíaca do apresentador teve uma piora e que ele havia sido incluído na fila de transplantes de coração.
Para entender melhor sobre o assunto, a coluna conversou com a médica Thalita Merluzzi, cardiologista da equipe de transplante cardíaco do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. No papo, ela explicou como funciona a fila pelo transplante, quanto tempo pode levar a espera por um novo coração e como é a vida do paciente transplantado.
Confira a entrevista completa:
Quais são os problemas apresentados por quem tem insuficiência cardíaca?
Existem dois tipos principais de insuficiência cardíaca. Uma é a insuficiência cardíaca sistólica, que é aquele que a gente fala que o coração do paciente não contrai. Então, a função do coração é alterada. Ele não consegue contrair de forma efetiva para mandar sangue para o corpo como um todo.
Outro tipo de insuficiência é o que a gente chama de insuficiência cardíaca com fração de injeção preservada. Que a função do coração tem um número bom, mas ele geralmente não relaxa. Ele tem uma disfunção, que a gente fala diastólica, que é o ato de relaxar o coração.
Quais são as principais causas de insuficiência cardíaca?
A principal causa de insuficiência cardíaca no Brasil é secundária a quadros de infarto. Então, é secundária a doença arterial coronariana. Os entupimentos nas artérias do coração acabam levando ao infarto. Parte das células boas do coração morrem e fica com uma cicatriz e esse tecido de cicatriz não consegue se contrair de forma efetiva igual era anteriormente. Então, vem a tal da insuficiência cardíaca. Esse é a principal causa na verdade de insuficiência cardíaca.
Outro tipo de insuficiência cardíaca relativamente frequente aqui no Brasil, por condições sanitárias, é a doença de chagas. A doença de chagas é uma causa de insuficiência cardíaca sendo a mais comum também, no sentido de insuficiência cardíaca sistólica. O paciente com doença de chagas pode ter quadros de arritmias malignas, assim como de alteração da função do coração.
Quais são as dificuldades que levam à necessidade de transplante?
O diagnóstico essencialmente da insuficiência cardíaca é um diagnóstico clínico. Então, é muito importante a gente saber o tipo de sintoma que esse paciente tem. Geralmente esse paciente tem inchaço nas pernas, tem um cansaço, tem dificuldade de dormir com um travesseiro só. Muitas vezes esse paciente precisa de vários travesseiros pra conseguir dormir. Ele acorda, às vezes, à noite com a sensação de que está sufocado, precisando abrir janela.
E geralmente o cansaço vai ficando cada vez mais progressivo e piorando de acordo com a evolução da doença. Ás vezes ele passa a ter cansaço pra fazer coisas mínimas do dia a dia, como por exemplo, tomar banho, fazer coisas práticas, até o quadro mais sério que são pacientes que têm cansaço ao repouso mesmo. Ele não precisa nem se movimentar, ele com cansaço, com a falta de ar, mesmo em repouso.
Eu brinco, eu falo que o paciente para ser submetido ao transplante cardíaco não é pra quem quer, é para quem pode. O que eu quero dizer com isso? Não é simplesmente o paciente ter insuficiência cardíaca. Existem vários requisitos de análise que a gente faz do paciente. Então, a gente avalia como está o contexto pulmonar desse paciente… Dependendo do tempo de insuficiência cardíaca, ele pode evoluir com alterações da pressão da artéria pulmonar e isso atrapalhar o contexto de transplante cardíaco ou até mesmo, dependendo de valores, ser até proibitivo.
Ele não pode ter nenhuma neoplasia, nenhum câncer em atividade, porque como a gente usa imunossupressor, isso poderia atrapalhar esses pacientes na defesa do próprio organismo contra células cancerígenas e aí poderia piorar o quadro. Então, a gente faz todo um rastreio clínico do paciente pra entender se ele tem contraindicação ou não.
Outro ponto super importante é o painel de reatividade imunológica. O que significa isso? A gente vai avaliar se o paciente tem presença de anticorpos que predispõe a rejeição. Isso é super importante, porque se ele tiver anticorpos, dependendo da quantidade, é proibitivo o transplante cardíaco ou não…
Quanto tempo pode levar para uma pessoa conseguir um coração?
O tempo de fila de transplante é muito variável. Geralmente, os pacientes que estão em casa podem tolerar anos. O paciente internado depende muito. Depende do tipo sanguíneo e das ofertas de órgãos. Então, esse paciente pode ter a sorte de receber uma doação de coração em dias, semanas, como também a gente já teve caso de pacientes que esperaram mais de um ano pra receber um órgão dentro do hospital internado. Essa variável é muito grande.
Como é feita a fila de transplante cardíaco? Ela é uma fila linear e única, controlada pela Central Nacional de Transplante. É um órgão regulador de transplantes. Ela obedece a antiguidade de registro e é dividida também em tipo sanguíneo.
Sabemos que a fila de transplante é longa. Como especialista, o que pode alavancar a posição do paciente para que seja atendido com mais urgência?
Quais são os critérios que a gente entende de gravidade? Muitas vezes o paciente tem insuficiência cardíaca e está listado pra transplante cardíaco em casa, esperando, sendo tratado com medicações, tem alguns aparelhinhos que a gente usa parecido com marcapasso, por exemplo o ressincronizador, que ajudam esse paciente a ficar bem clinicamente para esperar o coração. Mas muitas vezes, como é uma fila longa e que demora, acontece uma evolução de doença. E aí o paciente não tem condições mais de ficar em casa, esperando o coração. Então, a gente tem que internar esse paciente pra dar um suporte pra ele, pra que ele consiga aguardar, do ponto de vista clínico, num status um pouco melhor pra ser submetido ao transplante cardíaco.
Então quais são esses contextos? Quando o paciente interna e precisa de medicações, que a gente fala que são são inotrópicos, ele precisa dessa medicação pra ajudar o coração a bater mais forte. Com essa medicação, o sistema entende que o paciente que está internado em uso dessa medicação, ele é mais grave do que quem está em casa, que não está precisando de medicação. O mesmo raciocínio serve pra pacientes que somente a medicação não está sendo suficiente. E aí a gente tem que lançar mão de alguns dispositivos, como por exemplo, balão intraórtico, ecmo… Então, o sistema respeita: tipagem sanguínea, antiguidade e critérios de prioridade baseado em gravidade.
Quais são as características levadas em consideração para que o órgão seja considerado ideal?
A gente obedece o tipo sanguíneo. Um outro critério que é extremamente importante, porque está relacionado com o tamanho do coração é o peso do paciente. Então, o peso do doador tem que ser compatível com o peso do paciente. Fazemos um exame que compara o sangue do doador com o sangue do receptor, pra ver se tem a formação de anticorpos ou não, pra ver a chance de rejeição. Esse exame é denominado Crossmatch. Dependendo da quantidade de anticorpos, a gente fala que ‘roda a fila’. Ou seja, se o paciente tiver muitos anticorpos contra aquele órgão que ele vai receber, a gente bloqueia o transplante pra esse órgão e vai para outro, para o próximo da fila… E esse paciente segue aguardando o transplante cardíaco.
Quando tempo, em média, leva uma cirurgia de transplante?
A cirurgia de transplante cardíaco tem tudo muito sincronizado. O tempo ideal é que o coração saia do doador e chegue no receptor até em torno de quatro horas.
A equipe vai captar o órgão, faz a inspeção, olha o coração, vê se está tudo bem, avisa a equipe que está em loco, essa equipe se prepara, já leva o paciente pro centro cirúrgico, faz anestesia e o paciente fica esperando o órgão chegar. Na hora que o órgão está em sala, é retirado o órgão doente e colocado o órgão novo. O tempo médio de demora da cirurgia é em torno de quatro a cinco horas.
Mas uma coisa que é superimportante é o tempo de que a gente chama de isquemia de órgão, que é o tempo que o órgão ficou fora do corpo. No caso do coração, idealmente quatro horas. Algumas vezes a gente pode considerar seis horas, mas idealmente quatro horas.
O paciente fica internado até encontrarem um coração e fazer o transplante?
Não obrigatoriamente. Tem pacientes que tem a sorte do órgão sair e não ter ninguém priorizado, e ele vir de casa. É raro, são poucos eventos, porque como a oferta é pequena, muitos pacientes deterioram na fila e acabam tendo necessidade de internar, entrando na prioridade pela internação por gravidade. Mas ele pode estar em casa esperando, chegar o coração e ele internar pra receber o coração novo.
Após a cirurgia, quais são os cuidados que o paciente precisará ter?
Nos primeiros seis meses é o momento em que a gente tem que ser muito mais atento referente a risco de rejeição. Baseado em exames como ecocardiograma e biópsia, a gente acaba monitorando pra ver se está tendo rejeição ou não.
A rejeição é mais comum nos primeiros seis meses, principalmente na fase aguda, mas de uma forma geral ela tem tratamento. O importante é a gente diagnosticar. Então, o paciente fez o transplante cardíaco, na sequência a gente vai ajustar a dose dos imunossupressores, é mais de uma classe de medicação que a gente usa, porque não existe uma dose específica para todos. A dose é individualizada de acordo com os exames de sangue que a gente faz.
Quando a gente entende que o paciente está no ideal de imunossupressor, geralmente esse paciente passa por uma biópsia cardíaca. Como que é feita a biópsia cardíaca? Tem gente que acha que é uma nova cirurgia. Não, não é uma nova cirurgia. Lembra muito um procedimento de cateterismo, que vai pela virilha… Um furinho que é feito pela virilha, vai por dentro dos vasos, chega lá no coração e pega pedacinhos pequenos do coração que vai pra análise. Isso é super importante pra gente ver se o que a gente está usando de imunossupressor para aquele paciente é adequado pra evitar rejeição. E, ao mesmo tempo, se tiver algum quadro de rejeição ainda em uma fase inicial, a gente já consegue otimizar o tratamento com esse paciente internado mesmo.
Qual é a importância de uma campanha para transplantes?
Eu acho fundamental! E eu quero muito aproveitar esse momento em que está se veiculando muito sobre o transplante cardíaco, para falar sobre conscientizar. Muito se vê pelo lado da família que perde um ente querido, um óbito na família, que é muito triste. Mas pouco se fala de quem está a espera da doação, da caridade de alguém. E são milhares de pessoas aguardando a caridade de alguém.
Então, é triste perder um ente querido e é mais triste ainda ver a possibilidade de um órgão que poderia salvar a vida de outras pessoas indo embora.
Eu acho extremamente importante e necessário a veiculação das informações. Mostrar o outro lado. Tem gente aqui ávido por viver, precisando de um órgão pra continuar. E mais do que isso, que eu sempre falo, é as pessoas falarem com seus familiares se querem ou não ser doador. Porque, muitas vezes, num cenário de perda de ente querido, a gente fica triste e não quer pensar em nada, não quer pensar em doar ou não. Mas se é um desejo do ente querido, fica muito mais fácil o processo.
Que cuidados os transplantados tem que ter até o fim da vida?
A nossa ideia é de uma forma individualizada, com cada paciente. Que ele volte pra sociedade, pra ter uma vida totalmente normal. Mas ele é um paciente que vai tomar medicação de imunossupressor para o resto da vida, vai seguir um acompanhamento médico bem de pertinho para monitorizar questões de rejeição.
Eu brinco que não é um coração que veio de fábrica, né? Então, é um coração que tem que ser cuidado. Os mesmos fatores de risco para pessoas que tenham o coração não transplantado, como pressão alta, diabete, sedentarismo, obesidade, alteração de colesterol, tudo isso também vai ter repercussão no coração novo. Então, tem que ter uma mudança de qualidade de vida e tem que vir junto essa conscientização.
Fonte: Metrópoles
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